11/04/1974, Semana Santa. Ieda viajou do Rio para São Paulo. Alguns dias depois, sua família recebeu um telefonema anônimo informando que Ieda estava presa. Ela nunca mais foi vista e hoje faz parte da lista dos desaparecidos políticos do Brasil.

O que esse breve registro nos diz de uma vida? No livro O Princípio Esperança, Ernst Bloch afirma que o desejo de imortalidade nem sempre se deu como mera vontade de prolongar a vida. Uma das motivações para a busca pela vida após a morte também foi o desejo de justiça. Frente ao dado bruto de que a morte iguala a todos, vítimas e carrascos, haveria a promessa de justiça na vida renascida. Neste sentido, ainda segundo Bloch, foram comuns os mitos de deuses que registravam em livros os atos de cada um, preservando-os para a eternidade. Talvez, todo gesto de registrar algo sobre uma vida, sobretudo uma vida como a de Ieda, tenha algo desse sentido de justiça, mesmo que em proporções infinitamente menores, quando o registro é realizado por seres tão mortais quanto ela. E talvez, além disso, cada registro indique que a vida, quando luta por mais vida, não é vã.

Pouco se fala sobre Ieda. Quando estudou direito na UnB, não foi liderança política em evidência. De relatos de amigos, o que mais se ouve é o termo: discreta. Em sua certidão de óbito consta o último dia em que foi vista livre, 11/04, além de dados como: “falecida em hora e lugar ignorados”, “sepultada em lugar ignorado”. Sabe-se que a passagem de Ieda pela UnB a aproximou da política, integrando-a na luta contra a ditadura. Foi assim que ela passou a atuar no setor de apoio da ALN. A viagem de 11/04, quando ela, já formada, morava no Rio, visava a ajudar um casal de militantes a sair do Brasil. Em algum ponto do trajeto Ieda foi capturada. De acordo com o dossiê da Comissão de Mortos e Desaparecidos, a família conseguiu contatar João Batista Figueiredo, então chefe do SNI, que teria afirmado que Ieda era perigosa e deveria estar foragida. Algum tempo depois, a família recebeu duas cartas escritas com a letra de Ieda em que ela afirmava estar bem, uma supostamente enviada de Belo Horizonte e outra do Uruguai (a segunda, com a letra muito tremida – forte indício de violência).

Ainda segundo o dossiê, um advogado não nomeado afirmou que Ieda foi assassinada por ter visto um companheiro morrer sob tortura. De todo modo, claramente as cartas foram escritas sob coação – e, portanto, os dados de seu envio são falsos. Espanta o cinismo, o objetivo de despistar a busca de uma família desesperada e a tortura psicológica contra essa mesma família. Tanto assim que, anos depois, em 1977 e 1979, a mãe de Ieda recebeu ligações de pessoas simulando ser Ieda ou falando sobre ela. Qual o objetivo de tais telefonemas? Difícil decifrar alguma finalidade em atos tão brutais.

Em audiência pública à Comissão Anísio Teixeira, Betty Almeida afirmou que mãe de Ieda, já em 1989, ainda acreditava que sua filha estava viva. Na conversa da família de Ieda com João Batista Figueiredo anos antes, em 1974, ele teria frisado várias vezes a palavra “amargura”. A carta supostamente enviada do Uruguai, mas com letra identificada como da própria Ieda, escrita com mãos trêmulas, terminava com um pedido para sua mãe: “tenha calma e não se amargure mais”.

Ieda nasceu no Rio, a 09/07/1945. A data oficial de sua morte é 11/04/1974. De seus assassinos quase nada se sabe, a não ser que seguem impunes e protegidos pelo silêncio


Daniel Faria é professor do Departamento de História e membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade