A cerimônia de instalação da Comissão da Verdade da Universidade de Brasília foi permeada por depoimentos emocionados de pessoas que vivenciaram a repressão durante o período militar. Integrantes da Comissão criada pelo reitor José Geraldo de Sousa Junior e participantes da cerimônia de abertura compartilharam histórias tristes de uma época sombria, em que a defesa da democracia se tornou atividade arriscada, passível de prisão, tortura e assassinato.

Cláudio Almeida, ex-aluno do Departamento de Economia da UnB e integrante da Comissão Anísio Teixeira, diz que resgatar histórias da época é muito difícil, pois traz à tona muita dor, mas considera os relatos fundamentais para denunciar os abusos e evitar que situações parecidas voltem a acontecer.

Amigo de Honestino Guimarães desde o 1º ano científico no colégio Elefante Branco, em 1961, Cláudio relembra com detalhes a violenta invasão policial que a UnB sofreu no dia 29 de agosto de 1968. “No dia anterior, vários pais de estudantes, que eram do Exército ou ligados ao regime, sabiam que algo grave iria acontecer e pediram a seus filhos que não fossem à Universidade. Muita gente não levou o boato a sério, eu inclusive”, conta Cláudio, cujo pai era o deputado Manoel de Holanda, da Arena, partido ligado ao regime militar.

Cláudio afirma que chegou à Universidade de manhã cedo, quando encontrou Honestino. Em seguida, foi para uma aula de economia do professor Lauro Campos. “Às 8h30, começamos a ouvir gritos: prenderam o Honestino”, relata. Revoltados, estudantes viraram uma viatura da polícia e botaram fogo no veículo. “Eu disse para não fazerem aquilo, pois seria a deixa para algo muito mais sério”, acrescenta. Ele tinha razão: por todas as vias de acesso da Universidade começaram a surgir policiais civis, militares, oficiais do Exército e do Corpo de Bombeiros. “Chegaram atirando, quebrando laboratórios, batendo nos estudantes, que reagiram jogando pedras. Virou uma guerra”, afirma.

Após muito tumulto, a situação foi controlada pelos policiais, que levaram os estudantes em fila indiana para uma quadra de basquete, onde começaram a fazer uma triagem para identificar possíveis líderes e militantes políticos. “Fui levado para o DOPS e depois ao Exército, onde fui espancado pela polícia”, diz Cláudio, que estava no penúltimo ano da faculdade e tinha 22 anos. “Colocaram o Honestino na minha frente. Queriam que ele me denunciasse, que dissesse que eu era militante ou ligado a sindicatos, mas ele não falou nada. Ele mal conseguia ficar de pé, de tanto que foi torturado”, afirma. Cláudio participava do grupo de esquerda Ação Popular e estava engajado na resistência ao regime.

Cláudio conta que não ficou muito tempo preso, pois amigos do pai dele se mobilizaram por sua liberação. “Quando reencontrei o Honestino, ele me disse que não dava mais, que ele tinha de ir para a clandestinidade. Eu não tinha estrutura para seguir esse caminho. Não nos vimos mais”, afirma. Cláudio espera que os trabalhos da Comissão da Verdade ajudem a denunciar os casos de violência e a diminuir o sofrimento de todos os que contestaram o regime.

MARX - Durante a cerimônia, o reitor José Geraldo contou a experiência do professor de Ciência Política Nielsen de Paula Pires, fundador e diretor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. “Ele saiu do Brasil devido à repressão e foi para o Chile, de onde foi expulso por um decreto assinado por um general com sobrenome Marx”, disse o reitor.

Perserguições levaram Nielsen de Paula a deixar o Brasil 

Nielsen, que também integra a Comissão da UnB, atuava na Juventude Universitária Católica, em São Paulo, e era presidente de centro acadêmico em 1968, ano em que foi decretado o funesto AI-5, que definiu o momento mais duro do regime militar e suprimiu, por 10 anos, direitos políticos e civis no país. “Muitos participantes da Junta Universitária militavam no movimento Ação Popular [organização clandestina de esquerda entre 1962 e 1973] e meus amigos começaram a ser presos. Saí do Brasil e fui para o Chile, onde fui para o Estádio Nacional para ser tratado como prisioneiro de guerra após o golpe do general Augusto Pinochet, que contou com o apoio de militares brasileiros”, conta.

Depois de 15 anos no exílio, período em que morou na Bélgica, Estados Unidos e México, após ser expulso do Chile, Nielsen veio para Brasília para lecionar na UnB. “Meu primeiro dia de aula foi o primeiro dia da gestão de Cristóvam Buarque”, diz. Cristovam assumiu a reitoria da UnB em 1985, ano do início da redemocratização do Brasil.

Para Nielsen, o mais importante do trabalho da Comissão da Verdade da UnB será “a recuperação da história e a projeção dessa história para o futuro”. “A atual geração colhe frutos da luta da nossa geração por mais democracia, mais justiça social. Vejo a comissão como um meio de resgatar os heróis que tivemos”, concluiu.

 

Ex-aluno, Cláudio Almeida foi preso junto com Honestino 

OVOS E TOMATES - O período da ditadura concentra inúmeros relatos de abuso e violência, mas alunos daquela época também citaram, durante a instalação da Comissão, histórias que arrancaram risadas dos presentes. O procurador federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Virgílio Veiga Rios, relembrou a desastrosa visita que o poderoso Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger fez à UnB em 1981. Aurélio era estudante do Departamento de Direito no reitorado de José Carlos Azevedo.

Em meio a um turbulento contexto nacional e internacional – ditadura militar no Brasil e guerra do Vietnã –, Kissinger veio proferir palestra no Auditório Dois Candangos. “Houve um cerco dos estudantes no local. Os pneus dos carros das autoridades foram furados e subitamente acabaram os estoques, nas redondezas, de ovos e tomates, que foram jogados nas autoridades que saíam do auditório”, contou, rindo, Aurélio. “Kissinger teve de ir embora de camburão para não ser atingido”.