O momento é significativo e providencial: no aniversário de um ano da morte de Maria Rosa Leite Monteiro, mãe de Honestino Guimarães, e a menos de um mês dos 40 anos do desaparecimento do universitário, ele será anistiado, post mortem, pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O gesto é simbólico, porém não menos crucial. O perdão político surge como um pedido de desculpas públicas à família do estudante goiano "pela perseguição que ele sofreu em vida e posteriormente pela responsabilidade do Estado no seu desaparecimento", conforme declarou o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.
O gesto será um dos mais importantes da história da Comissão, avaliou Abrão, por tudo o que o ex-presidente da União Nacional dos Estudantes representa para a memória da militância estudantil brasileira nos anos de chumbo. Desse modo, o pedido de desculpa se estenderá, nas palavras do secretário nacional de Justiça, "a todos os estudantes que foram impedidos de realizar seus projetos de vida durante a ditadura militar".
A reparação oficial vem atender uma solicitação formal da família de Honestino à Comissão. A concessão da anistia, no entanto, é apenas uma etapa do processo. "É importante, não tem como deixar de ser, pelo direito à memória, verdade e justiça. Mas temos outros passos a dar", afirmou Mateus Guimarães. O perdão, ressalta o sobrinho de Honestino, não pode se resumir a reparar erros passados, mas, principalmente, deve assegurar que crimes cometidos pelo Estado sejam punidos. A questão, alerta Mateus, não tem apenas importância histórica. É atual: "Nas manifestações dos últimos meses, a polícia tem mantido a lógica da opressão e da repressão, claros resquícios da ditadura".
AGRAVANTES
O reconhecimento público da responsabilidade do Estado nas perseguições e no desaparecimento de Honestino Guimarães não tem nenhum efeito indenizatório nem responde às perguntas que afligem a família do estudante desde 10 de outubro de 1973, quando ele saiu de casa, no Rio de Janeiro, e nunca mais foi visto — é possível que ele tenha sido trazido a Brasília. O esclarecimento dos fatos depende de investigações que vêm sendo feitas pelas comissões da verdade, criadas em diversas instâncias para tentar esclarecer as circunstâncias dos desaparecimentos políticos ocorridos durante a ditadura militar e para, se possível, punir os culpados.
Honestino viveu cinco anos na clandestinidade, entre Brasília, Rio e São Paulo. Centenas de outros, como ele, acabaram sequestrados, presos, torturados, mortos, e, seus corpos, ocultados. "São vários crimes, com o agravante de que foram cometidos pelo Estado. Se essas pessoas não são julgadas, abre-se uma brecha", alerta Mateus Guimarães. A Lei da Anistia, de 1979, permite o perdão para torturados e torturadores, ou seja, legitima a impunidade dos que agiram em nome do Estado. A opinião é compartilhada por integrantes das comissões envolvidas na organização do evento da próxima sexta-feira, dia 20.
A cerimônia de concessão de anistia post mortem será realizada no Beijódromo, na UnB. Lugar mais representativo não haveria. O memorial tem o propósito de reavivar o pensamento e a alma de Darcy Ribeiro, fundador da universidade. "Estamos, de algum modo, colaborando com a reaproximação da atual UnB com o seu projeto político original, de Darcy Ribeiro, e interrompido pela ditadura militar", observou Paulo Abrão. O ato de reparação será, ao mesmo tempo, o reconhecimento do papel de resistência que a instituição brasiliense cumpriu no regime militar. Na ocasião, serão homenageados professores, estudantes e funcionários da universidade perseguidos pelos militares.
INVESTIGAÇÃO
Ao deferir o pedido da família de Honestino, a Comissão de Anistia manifesta uma mudança na interpretação do conceito de perdão político. "A anistia mudou de sentido ao logo do tempo. A comissão percebeu que não se trata apenas de reparação econômica. A família de Honestino não fez essa solicitação. Queria o reconhecimento de que ele foi vítima de atos de exceção praticados pelo regime", explica Cristiano Paixão, um dos coordenadores da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.
Antes de deixar a coordenação-geral da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles comentou dificuldades excepcionais das investigações sobre o desaparecimento de Honestino. Isso porque ainda não foi encontrado, no banco de dados do Arquivo Nacional, nenhum documento relevante sobre a prisão do estudante. "Sem saber as condições em que se deu o sequestro e as pessoas que estiveram envolvidas, é difícil dar início a um processo judicial", observa o sobrinho dele.
Há evidências de que, depois de sequestrado no Rio de Janeiro, ele foi trazido para Brasília e, aqui, entregue ao Pelotão de Investigações Criminais do Exército, o famigerado PIC. Essa foi a informação obtida pela mãe de Honestino, Maria Rosa, que, em 24 de dezembro de 1973, esperou horas na sede do PIC para que lhe fosse autorizada uma visita ao filho. Até que alguém informou que o líder estudantil ali não estava.
Nem tudo, porém, são trevas. Apurações sobre o desaparecimento de Honestino e de dois outros estudantes da UnB — Ieda Delgado e Paulo de Tarso Celestino —, feitas pela Comissão da Verdade da instituição, localizaram algumas pistas. Cristiano Paixão explica que a Comissão não tem função investigatória, mas pode fazer pesquisas, produzir relatórios e encaminhá-los aos órgãos que tenham essa atribuição.
Quase 40 anos após o desaparecimento do estudante de geologia, a sua memória não esmaece, fortalece. Ainda em 2013, ou talvez no começo do próximo ano, deverá ser publicada Paixão de Honestino, biografia mais afetiva do que política, de autoria de Beth Almeida, ex-aluna da UnB, que conviveu de perto com o amigo militante. A biógrafa lembra que há eventos sendo preparados em Brasília, no Rio e em São Paulo em homenagem à memória de um dos heróis da juventude brasileira nos terríveis anos de ditadura militar, do qual fará parte uma sessão solene no Senado.
O QUE DIZ A LEI
A Lei n° 9.140, de 4 de dezembro de 1995, reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação ou de acusação de envolvimento em atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 5 de outubro de 1988 e que, por esse motivo, tenham sido detidas por agentes públicos. O texto também cria a Comissão de Anistia, que prevê, como atribuições, o reconhecimento de pessoas desaparecidas ou mortas no período, a localização dos corpos e a emissão de pareceres sobre indenizações — nunca menores do que R$ 100 mil. Essa foi a primeira iniciativa do governo federal de reparação perante familiares e vítimas do regime de exceção.