No fatídico dia 29 de agosto de 1968, o campus da Universidade de Brasília foi invadido por tropas do Exército, numa radical demonstração de força que marcou o endurecimento da ditadura que vigorava à época no país. A entrada brutal dos militares no campus é considerada um momento estratégico para a condução dos trabalhos da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, que se reúne pela segunda vez nesta quinta-feira, 30 de agosto.
“A invasão de 1968 é estratégica para o nosso trabalho, porque marca uma virada na forma como a repressão se estabeleceu na Universidade de Brasília”, diz o professor José Otávio Nogueira Guimarães, coordenador de investigação da Comissão. Ele acrescenta que, “a partir de então, a repressão passa a se valer de estratégias mais elaboradas, dissimuladas, burocráticas e administrativas, mas ainda extremamente duras”.
A Comissão foi criada para apurar violações de direitos humanos e liberdades individuais que ocorreram na Universidade de Brasília entre abril de 1964 e outubro de 1988, duas datas extremas que, no Brasil, marcam o Golpe Militar e a promulgação da Constituição. Ainda estrutural, a reunião desta quinta-feira será dedicada à definição de metodologias, à construção de prioridades e à divisão de tarefas.
Assim como a invasão de 1968, outros dois momentos da repressão, e da resistência a ela, vão nortear os trabalhos da Comissão. Segundo José Otávio Guimarães, o primeiro começa com o Golpe de 1964 e se estende até o momento em que 223 professores pedem demissão da Universidade, em 1965, em um inescapável protesto contra a arbitrária demissão de nove professores, pouco antes. Leia mais aqui. “O projeto inicial da nova Universidade, então cheia de energia e idealismo, foi atingido em cheio por essas demissões, que representavam 79% do quadro da instituição”, lembra o professor.
Coordenador de relações institucionais da Comissão da Verdade, o professor da Faculdade de Direito Cristiano Paixão reitera que a evasão em massa dos docentes representou “um atentado à alma da instituição, no qual sua essência foi violentamente suprimida”.
O segundo momento estrategicamente elencado pela comissão vai de 1965 a 1968. “Nesse período, mesmo atingida, a Universidade de Brasília ainda resistia, valendo-se do movimento estudantil que começa a se elaborar a partir de 1967”, observa José Otávio Guimarães. Neste contexto, a invasão de 1968 foi um “divisor de águas”, segundo o professor, e inaugurou um período que se encerraria apenas em 1985, ano em que Cristovam Buarque tornou-se reitor da UnB. “A Comissão da Verdade quer levar em conta a especificidades destes três momentos históricos diferentes e ouvir os testemunhos de acordo com eles”, diz Guimarães.
ENDURECIMENTO – “De fato, a invasão de 1968 é um indício do endurecimento do regime, em que o espaço do diálogo fica anulado diante da força das armas”, diz o professor Cristiano Paixão. Ele acrescenta que o contexto histórico em que a invasão da UnB se deu “é um momento em que a ditadura vai se tornando ainda mais evidente, apesar de já ter começado brutal”.
Cristiano Paixão reitera que este momento do regime militar ficou marcado por um sistema repressivo cada vez mais sofisticado, em que o Estado começou a se organizar para espionar e reprimir. “A repressão que ocorreu aqui na UnB teve toda uma organização, um aparato repressivo marcado por processos administrativos, inquéritos, expulsões e espionagens”, lembra, reiterando que a Universidade “foi alvo da ditadura durante todo o regime”.
Àqueles que insistem em pensar que estes fatos são parte de uma história distante, o professor reforça: “Tudo isso marcou intensamente o que somos hoje, e a reconstrução da Universidade de Brasília ainda está em curso”.
DEPOIMENTO – A historiadora e professora da UnB Geralda Dias era estudante no campus na época e lembra do período em que a instituição foi alvo da ditadura militar. Geralda recorda que a morte do estudante secundarista Edson Luiz, baleado aos 16 anos durante um protesto no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968, foi um marco no movimento estudantil em todo o país. “Fizemos uma reunião na UnB para tratar do caso na mesma noite da tragédia. As passeatas e assembleias tomaram grandes proporções e o debate também cresceu no Congresso por conta da pressão da sociedade sobre o caso”, conta ela, que tem 43 anos de UnB e está organizando um livro sobre a história da Universidade.
Em Brasília, um dos principais espaços escolhidos para os protestos comandados por estudantes como Honestino Guimarães era a Avenida W3 Sul, pelo alto movimento de pessoas e carros. Geralda ressalta que houve uma primeira invasão no campus da UnB antes da violenta entrada de agosto de 1968. “A polícia chegou ao alojamento próximo da Faculdade de Educação às 6h, recolhendo todos os estudantes que estavam dormindo ou nas redondezas. Já havia um clima tenso com a polícia”, diz. Geralda havia dormido no alojamento na noite da primeira entrada dos militares, mas acabou poupada por ser a única mulher a ser encontrada. Segundo ela, a invasão marcou a primeira em vez que os alunos foram levados pelos militares para a quadra de esportes que, hoje, fica ao lado do Prédio Multiuso I.
Mas o auge da crise acabou sendo a invasão de agosto 1968, que representou um golpe duro para o movimento estudantil. “Foi decretada a prisão de oito estudantes, entre eles Honestino, que, a essa altura, já estava sendo escondido. No dia eu estava fora do campus e, quando tentei entrar, a Universidade estava toda cercada.”
A historiadora ressalta que a brutalidade dos militares e a falta de informação sobre os estudantes presos tiveram uma repercussão muito grande no país. Houve uma intensa pressão social: “O caso foi muito debatido no Congresso, nas famílias e entre os deputados que tinham filhos estudantes”. Depois da invasão de 1968, o movimento estudantil perdeu forças e sofreu diversos ataques externos. “A invasão é um dos casos mais emblemáticos da história da UnB”, reitera.