Criada em agosto de 2012, por Ato do então reitor José Geraldo de Sousa Júnior, a Comissão Anísio Teixeira objetiva investigar violações de direitos humanos e perseguições políticas a docentes, servidores e estudantes da UnB, além de estudar o funcionamento dos mecanismos repressivos e as formas de resistência durante a ditadura civil-militar (1964-1988). Anísio Teixeira foi nosso primeiro reitor, sendo afastado do cargo quando do golpe de 1964. Sua morte, em 1971, se deu sob circunstâncias suspeitas. Há fortes indícios de que Anísio foi assassinado pela repressão e temos, entre nossos objetivos, o de desvendar o acontecido. O caso de Anísio Teixeira está entre aqueles que consideramos emblemáticos – como os desaparecimentos forçados de Honestino Monteiro Guimarães, Paulo de Tarso Celestino e Ieda dos Santos Delgado. São casos de muita complexidade e que exigem colaboração entre diferentes comissões e instâncias do governo e da sociedade civil.
Do ponto de vista investigativo temos nos desdobrado, basicamente, em duas frentes: depoimentos ou audiências públicas e pesquisa documental (em acervos e jornais do período). Como resultado da pesquisa com os documentos, estamos traçando um mapa da rede repressiva dentro e em torno da universidade. Podemos dizer que a universidade foi intensamente vigiada e os impactos da repressão ditatorial são difíceis de mensurar. Ao contrário do que alguns afirmam, a perseguição não se deu apenas no nível político. Houve detalhado controle intelectual e interferências na vida acadêmica, uma presença constante e nada sutil de agentes infiltrados, espiões e delatores. Criando-se assim um ambiente incompatível com qualquer idéia de universidade. Inúmeros, também, foram os estudantes desligados, ameaçados, os docentes demitidos. Somem-se a isso os momentos em que a universidade foi ostensivamente ocupada por forças policiais e militares (como em 1968 e 1977) e temos aí um quadro de terror político constante, embora com intensidades variáveis.
Os depoimentos e audiências são insubstituíveis, por nos revelarem outra face da história. A face das vidas, da dor, da resistência, das paixões, enfim, das experiências vividas. E quando falamos de memória, não podemos nos esquecer desse aspecto: a memória marca os corpos e as subjetividades. A história é vivida. Com isso, as informações frias que encontramos nos documentos ganham vivacidade e força. Mas, também, lacunas são preenchidas, novas frentes e faces da repressão são descobertas. Assim, por exemplo, se lemos num documento de 1973 que 34 estudantes da UnB foram interrogados, acusados de fazerem parte de uma “infiltração subversiva”, com os depoimentos vem à tona o que está implícito no documento: as torturas, as prisões arbitrárias e as vidas que tiveram suas trajetórias bruscamente atingidas.
Também está ficando cada vez mais clara a existência de uma rede organizada de centros de tortura em Brasília. Tivemos, portanto, em torno da universidade as duas frentes do aparato ditatorial: uma rede, interna e externa à universidade, que produzia constantemente “informações” (sobre seu cotidiano, suas salas de aula, suas atividades culturais e intelectuais) e outra rede repressiva, violenta, responsável por incontáveis prisões e torturas. Evidentemente, as duas redes agiam em complementaridade.
Para encerrar esse quadro, uma observação. Algumas vezes, perguntam-nos sobre a palavra “verdade” que carregamos no nome de nossa comissão. Se não seria pretensioso, ou mesmo a que verdade o título se referiria. Não se trata de uma verdade metafísica, ou da verdade como sentido último. Nossos próprios usos da língua designam sentidos mais modestos e concretos para a palavra “verdade”: preencher lacunas que encobrem os destinos que foram dados a vidas, desfazer mentiras, confrontar-se com a ocultação astuciosa de informações, encontrar pistas e vestígios que esclareçam nossa história, almejar a veracidade. Com certeza, um sentido muito mais modesto e que nem de longe envolve a pretensão de se ter a última palavra sobre um assunto. Mas nem por isso menos urgente política e eticamente.
Daniel Faria é professor do Departamento de História e membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade